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Por meio do seu Espírito, que em vós habita (Rm 8.11).

A fim de entender a mudança inaugurada no Pentecostes nós devemos distinguir entre as várias modalidades nas quais o Espírito Santo entra em relação com a criatura.

Juntamente com a Igreja cristã, nós confessamos que o Espírito Santo é verdadeiro e eterno Deus e, portanto, onipresente. Assim sendo, nenhuma pedra ou animal, homem ou anjo está excluído de sua presença.

Com referência à sua onisciência e onipresença, Davi canta: “Para onde me ausentarei do teu Espírito? Para onde fugirei da tua face? Se subo aos céus, lá estás; se faço a minha cama no mais profundo abismo, lá estás também; se tomo as asas da alvorada e me detenho nos confins dos mares, ainda lá me haverá de guiar a tua mão, e a tua destra me susterá” (Sl 139.7-10). Essas palavras afirmam de forma inegável que a onipresença pertence ao-Espírito Santo e,: portanto, nem nos céus ou no inferno, no oriente ou ocidente existe um lugar ou ponto onde ele esteja excluído.

Essa simples consideração é, para o assunto em discussão, da maior importância, pois dela se depreende que não se pode dizer que o Espírito Santo tenha se movido de um lugar para outro; ter estado entre Israel mas não entre as outras nações; ter estado presente depois do dia de Pentecostes onde ele não estava antes. Todas essas apresentações diretamente se opõem à confissão de sua onipresença, eternidade e imutabilidade. O Onipresente não pode ir de um lugar para outro porque ele não pode ir para onde já está. Supor que ele é onipresente em certa ocasião e não em outra é ser inconsistente com sua divindade eterna. O testemunho de João Batista, “vi o Espírito descer do céu como pomba e pousar sobre ele” (Jo 1.32) e do evangelista Lucas, “quando caiu o Espírito Santo sobre todos os que ouviam a palavra” (At 10.44), não pode, portanto, ser entendido como se o Espírito Santo tivesse vindo a um lugar onde nunca tivesse estado antes, o que é impossível.

Entretanto — e essa é a primeira distinção que lança luz sobre o tema —, a descrição que Davi faz da onipresença se aplica à presença local no espaço, mas não no mundo do espírito.

Nós não sabemos o que são os espíritos, nem o que o nosso próprio espírito é. No corpo, podemos distinguir entre nervos e sangue, ossos e músculos, “e sabemos alguma coisa a respeito de suas funções no organismo, mas não podemos dizer como um espírito existe, move-se e funciona. Nós apenas sabemos que ele existe, move, e funciona de uma maneira inteiramente diferente daquela do corpo. Quando um irmão morre ninguém abre uma porta ou janela para a alma sair; pois sabemos que nem parede ou teto pode impedir sua subida para o céu. Em oração nós sussurramos de modo a não” sermos ouvidos pelas outras pessoas; no entanto acreditamos que o homem Jesus Cristo ouve cada palavra. A rapidez de um pensamento excede a da eletricidade. Numa palavra, as limitações do mundo material parecem desaparecer no reino dos espíritos.

Até o trabalhar do espírito na matéria é maravilhoso. O peso médio de um adulto é de cerca de 72 quilos. Para carregar um cadáver de um homem para cima de um edifício elevado, são necessários três ou quatro homens desse peso; no entanto, quando o homem estava vivo, seu espírito tinha o poder de carregar seu peso para cima e para baixo daqueles lances de escada com facilidade e rapidez. Mas onde o espírito se apossa do corpo, como o move e onde ele obtém essa rapidez é, para nós, um perfeito mistério. Isso nos mostra que o espírito está sujeito a leis totalmente diferentes daquelas que governam a matéria.

Nós enfatizamos a palavra lei. Segundo a analogia da fé, devem existir leis que governam o mundo espiritual como existem as que governam o natural. Contudo, devido às nossas limitações, não conseguimos conhecê- las. Mas nos céus conheceremos essas leis e todas as glórias e atributos do mundo espiritual, da mesma maneira como nosso médico conhece os nervos e tecidos do nosso corpo.

Contudo, uma coisa nós sabemos: o que se aplica à matéria não se aplica ao espírito. A onipresença de Deus tem referência a todo espaço, mas não a todo espírito. O fato de Deus ser onipresente não implica que ele habita no espírito de Satanás Dessa maneira, fica claro que o Espírito Santo pode ser onipresente sem habitar em cada alma humana, que pode descer sem mudar de lugar, e, assim, entrar numa alma até então não ocupada por ele e que estava presente entre Israel e os gentios, mas se manifestou no primeiro e não no último. Disso decorre que, no mundo espiritual, ele pode ir para onde não estava; que ele esteve entre Israel não tendo estado antes; e que, ele se manifestou em Israel de forma menos poderosa e diferente da forma pela qual agiria a partir do dia de Pentecostes.

O Espírito Santo parece agir sobre um ser humano de duas maneiras — a partir  de fora ou de dentro. A diferença é semelhante àquela no tratamento do corpo humano pelo médico e pelo cirurgião: o primeiro age sobre o corpo, por meio dos remédios, que curam internamente; o segundo, pelas incisões e aplicações externas. Uma comparação muito deficiente, na verdade, mas que pode ilustrar mais ou menos a operação dupla do Espírito Santo sobre a alma dos homens.

No início, descobrimos somente a comunicação externa de alguns dons. A Sansão ele concede força física extraordinária. A Aoliabe e Bezalel, talentos artísticos para a construção do tabernáculo. Josué foi enriquecido com gênio militar. Essas operações não tocaram o centro da alma e não foram salvadoras, mas meramente externas. Elas se tornaram mais duradouras quando assumiram um caráter oficial, como no caso de Saul, embora nele nós encontremos a melhor evidência do fato de que eram apenas externas e temporais. Elas assumem um “caráter mais elevado quando recebem a credencial profética, embora o exemplo de Balaão nos mostre que, ainda assim não peneiraram 1 no centro da alma, mas afetaram o homem apenas exteriormente.

Mas no Antigo Testamento houve também uma operação interna nos crentes. Os israelitas crentes foram salvos. Portanto, eles devem ter recebido a graça salvadora. Visto que a graça salvadora sem a operação interior do Espírito Santo está fora de cogitação, segue-se que ele foi o realizador da fé tanto em Abraão quanto em nós mesmos.

A diferença entre as duas operações é clara. Uma pessoa externamente trabalhada pode se tornar enriquecida com dons externos, enquanto espiritualmente permanece tão pobre como sempre foi. Da mesma forma, tendo recebido o dom interior da regeneração, essa pessoa pode ser despendido de todo talento que adorna o homem exteriormente. Daí nós temos esses três aspectos: Primeiro, existe a onipresença do Espírito Santo no espaço, a mesma que há no céu e no inferno; entre Israel e entre as nações.  Segundo, existe a operação espiritual do Espírito Santo conforme a escolha, que não é onipresente; ativa no céu, mas não no inferno; entre Israel, mas não entre as nações.

Terceiro, essa operação espiritual trabalha de fora, comunicando dons temporários, ou de dentro, comunicando o dom permanente da salvação. Nós falamos até aqui da obra do Espírito Santo sobre pessoas individuais, o que é suficiente para explicar essa obra nos dias do Antigo Testamento, mas, quando nós chegamos no dia de Pentecostes, isso não funciona mais, pois sua operação em particular, naquele dia e depois dele, consiste na extensão de sua operação a um grupo de homens organicamente unidos.

Deus não criou a humanidade como um monte de almas isoladas, mas como uma raça. Consequentemente, em Adão, a alma de todos os homens se tornou caída e corrompida. Semelhantemente, a nova criação no reino da graça não foi realizada em indivíduos isolados, mas foi a ressurreição de uma nova raça, de um povo de propriedade exclusiva, de um sacerdócio santo. Essa raça privilegiada, esse povo peculiar, esse sacerdócio santo é também organicamente um e coparticipante da mesma benção espiritual.

A Palavra de Deus expressa esse fato ensinando que os eleitos constituem um corpo, do qual somos todos membros, um sendo o pé, o outro, o olho, o outro, uma orelha, etc. — uma figura que dá ideia de que os eleitos sustentam mutuamente a relação de uma união vital, orgânica e espiritual. Isso não é meramente externo, realizado por amor mútuo, mas por uma comunhão vital entre os eleitos que existe em virtude de sua origem espiritual. Essa realidade é lindamente expressa em nossa liturgia: “Tal como de muitos grãos moídos se faz a farinha e se assa um pão, e de muitos frutos prensados juntos jorra um só vinho, assim também todos nós, que pela fé verdadeira fomos enxertados em Cristo; somos reunidos num só corpo”.

Essa união espiritual dos eleitos não existia no meio de Israel, nem podia ter havido durante o seu tempo. Havia uma união de amor, mas não uma comunhão espiritual e vital que emanava da raiz da vida. Essa união espiritual dos eleitos se tornou possível somente pela encarnação do Filho de Deus. Os eleitos são homens que consistem de corpo e alma. Portanto, esse corpo é, pelo menos em parte, visível. Somente quando, em Cristo, surgiu o homem perfeito, capaz de ser o templo do Espírito Santo, corpo e alma, o influxo e derramamento do Espírito Santo foi estabelecido no corpo e mediante o corpo assim criado.

Entretanto, isso não ocorreu diretamente depois do nascimento de Cristo, mas após a sua ascensão, pois sua natureza humana só revelou sua perfeição plena após, quando, como o Filho glorificado de Deus, ele se sentou à destra do Pai. Somente então foi dado o Homem perfeito, que, por um lado, podia ser o templo do Espírito Santo sem impedimento e, por outro, podia unir o espírito dos eleitos em um corpo. E quando, pela sua ascensão, ele se sentou ao lado da mão direita de Deus, isso se tornou um fato. Quando assim os eleitos se tornaram um corpo, foi perfeitamente natural que, da Cabeça, a moradia do Espírito Santo fosse comunicada a todo o corpo. Dessa maneira, o Espírito Santo foi derramado no corpo do Senhor, em seus eleitos, a Igreja.

Dessa forma, tudo fica claro: fica clara a razão pela qual os santos do Antigo Testamento não receberam em sua época o cumprimento da promessa, já que sem nós eles não poderiam ser feitos perfeitos, tendo que aguardar por essa perfeição até a formação do corpo de Cristo, no qual também foram incorporados, fica clara a razão pela qual a demora do derramamento do Espírito Santo não impediu a graça salvadora de operar sobre a alma dos santos da antiga aliança; fica clara a palavra de João de que o Espírito Santo não havia sido dado porque Jesus ainda não fora glorificado; fica claro por que os apóstolos nasceram de novo muito antes do Pentecostes e receberam dons oficiais na tarde do dia da ressurreição, embora o derramamento do Espírito Santo no corpo assim formado só tenha ocorrido no Pentecostes; fica claro o motivo pelo qual Jesus podia dizer: “se eu não for, o Consolador não virá para vós outros”, e novamente, “se, porém, eu for, eu vo-lo enviarei” (Jo 16.7), pois o Espírito Santo tinha de fluir para o corpo de Cristo a partir da Cabeça; fica claro também que ele não o enviaria de si mesmo, mas do Pai; fica claro por que esse derramamento do Espírito dentro do corpo de Cristo nunca se repetiu e só podia ocorrer uma vez; e, finalmente, fica claro que o Espírito Santo estava, de fato, no meio de Israel (Is 63.12), trabalhando sobre os santos de fora, enquanto, no Novo Testamento, é dito que ele está dentro deles.

Nós chegamos, portanto, às seguintes conclusões:

Primeira, os eleitos devem constituir um só corpo. Segunda, eles não eram constituídos assim durante os dias da antiga aliança, de João Batista, e de Cristo enquanto na terra.

Terceira, esse corpo não existiu até que Cristo subiu aos céus e se assentou à mão direita de Deus, conferiu a esse corpo sua unidade, e foi dado à igreja como o Cabeça sobre todas as coisas (Ef 1.22).

Por último, Cristo, como o Cabeça glorificado, tendo formado seu corpo espiritual pela união vital dos eleitos, no dia de Pentecostes, derramou seu Espírito Santo em todo o corpo, para nunca mais se separar dele.

Que essas conclusões não parecem conter nada além do que a Igreja de todos os tempos têm confessado é evidente no fato de que as Igrejas reformadas sempre sustentaram que:

Primeiro, nossa comunhão com o Espírito Santo depende de nossa união mística com o corpo do qual Cristo é o Cabeça, o que é o pensamento subjacente da Santa Ceia do Senhor.

Segundo, que os eleitos formam um corpo sob Cristo, o seu Cabeça:

Terceiro, que esse corpo começou a existir quando recebeu sua Cabeça e, de acordo com Efésios 1.22, foi dado a Cristo ser o Cabeça depois de sua ressurreição e ascensão.

Autor: Abraham Kuyper

Trecho extraído do livro A Obra do Espírito Santo, pág 149-153.